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Cronicamente Doente

Cansaço. Um extremo cansaço, não só físico. Um cansaço que vem do imo mais imo. Um só desejo: não sentir. A dor crónica há dezenas de anos, em múltiplas, variadas e sempre inesperadas manifestações, acabam com a vontade de reagir. “A criança mais frustrada não é a que mais chora”. Pois é. Já não há forças para o grito. Às vezes nem mesmo para o choro. Poupam-se para as funções mais essenciais. Tenta-se esquecer o corpo e voar com o pensamento para outras paragens, mas o res cogitans está ligado ao res extensa, numa dicotomia indecifrável ainda na nossa civilização. Como pano de fundo, sempre a pergunta de Job: Porquê o Mal? O Homem e o Mistério do Mal. Anda-se sempre à volta do mesmo, há milhares de anos. “Paciência de Job”. Mas Job não era paciente! Job interrogava-se, interrogava Deus, indignava-se com a injustiça da sua situação. Só quem não leu ou leu sem entender, pode falar na “Paciência de Job”. Job não tinha revolta contra Deus, isso sim. Por isso a sua mulher o maltratava e desprezava por continuar a reverenciar o Criador. Tal como Job, não compreendo a revolta que muitos em sofrimento dizem sentir. Talvez não sintam revolta. Talvez seja a tal impaciência que os leva a agredir quem está mais perto. Viver é estar sujeito ao sofrimento, basta olhar em volta para o reconhecer. Mas estar vivo é também receber os dons do Bem. Job procurava o sentido. Punha-se porquês e Deus compreendia a sua angústia existencial e ia respondendo às suas questões mas sem nunca lhe desvendar o grande Porquê: o Mistério do Mal. Na velha alegoria bíblica, Job está a ser posto à prova. E nós? Que pensamos disso? Mesmo no extremo cansaço de ser cronicamente doente, o mistério impõe-se.
A pergunta sobre a existência do Mal, anda sempre ligada ao sentido da Vida. “Livrai-nos do mal”. Fazer o Bem, procurar o Bem, compensar a Tristeza com a Alegria. Banir todo o mal estúpido que infligimos uns aos outros, por ignorância, mesquinhez, maldade, indiferença. E ser solidário. Porque estar vivo é comunicar. Se nos fechamos, morremos. Abrir os olhos para o mundo, para os outros eus que partilham connosco este Tempo que nos cabe, é a única posição que entendo.
Estar cronicamente doente é sentir pejo de dizer como nos sentimos. “Como estás?” “Dói-me uma perna, um braço, os olhos…” Dói-me, dói-me isto hoje, amanhã isto e mais aquilo…” Não atino. Mal sem cura. Apesar de tantos medicamentos. Ou por causa já também de tantos medicamentos. Ao mal da doença juntam-se os males da cura.
Quem é cronicamente doente, raramente gosta de hospitais. Foge das urgências como o diabo da cruz. Doença crónica exige médico crónico, que conheça o doente e a sua circunstância. Numa urgência hospitalar somos ilhas, num imenso arquipélago, mergulhado no mar da dor e da impaciência. Entrar de maca, preso em dores agudas e ser atendido num ambiente de alegre brincadeira e brejeirice entre enfermeiros, como se quem é atendido não estivesse presente, dói. Ficar horas, muitas, sem saber o que lhe vão fazer, quantas pessoas tem à frente, ser mudado de lugar por todos os cantos da sala sem ser atendido por um médico, dói. Correrem com os “acompanhantes”, sem querer saber se o doente ouve a chamada ou está minimamente cônscio, aflige. Estar aflito para ir à casa de banho e ficar esquecido numa sala, à espera da “arrastadeira”, sem poder sair, sem poder mexer-se, e ter que gritar até ser ouvido, dói. Ouvir chamar constantemente para “Cirurgia” e “Aerossóis” e ninguém para consulta, espanta até se perceber que a chamada refere o nome da sala e não do serviço que lá se pratica. Coisas. São coisas que estão nas macas ou são pessoas? Há alguém que explique e forme para atender pessoas em dificuldade? Alguém que ensine que precisa pôr-se no lugar do outro, sentir como o velho, como o jovem, como outro diferente mas igual a si na necessidade de atenção em situação de emergência?
Trinta e três anos numa associação de Doentes. A ouvir falar de Direitos e Deveres dos Doentes. Ouvir falar. Ouvir falar. Ouvir falar!
No meio de tanto erro, no meio do extremo cansaço, no meio da eterna pergunta sobre o Mal sem sentido, uma gratidão enorme pelos profissionais de saúde que dão o seu melhor. E lá estavam eles, também ali nas urgências, também eles perdidos naquela babilónia de confusão de Direitos e Deveres e falta de atenção à dignidade do doente. No meio do Mal, o Bem é luz, é bálsamo que alivia mesmo que a dor continue latente.
Resta-nos continuar a lutar. A abrir os olhos, e os ouvidos para o mundo, por maior que seja o cansaço e o seu convite à desistência. Para que todos os que trabalham na área da Saúde sejam formados para atender Pessoas e não coisas.

Fernanda Ruaz (sócia fundadora e ex-Vice-Presidente da LPCDR)
Maio de 2015