A propósito do Dia Internacional da Pessoa Portadora de Deficiência
Hoje acordei com o telefone a tocar. Seria a esperada marcação de consulta de fisioterapia, pedida há uma semana atrás e que permitiria acelerar a minha recuperação e a minha mobilidade? Não. Era uma coordenadora do IEFP. Possibilidade de emprego?, pensei. Também não. Ainda assim, a importância do assunto levou-me a pensar em escrever esta nota, precisamente neste Dia Internacional da Pessoa Portadora de Deficiência de 2014. Vivemos num mundo caricato, onde as palavras têm peso, constituem rótulos e estereótipos que cada um constrói a seu modo. E todos fugimos desse peso das palavras, nos refugiamos da vulnerabilidade e da fragilidade, nos encolhemos para esconder a nossa dependência e muitas vezes, no processo, abdicamos dos nossos direitos. Eu tenho artrite desde os meus 5 anos de idade. Cresci dom ela, aprendi a (con)viver com ela. Faz parte de mim e de quem eu sou. Durante anos, também eu fugi do estereótipo do «doente», de ser «deficiente». Foram precisas quase três décadas de doença reumática para que finalmente, em 2006, recorresse a uma Junta Médica onde me atestaram 65% de incapacidade. Foram precisos mais 8 anos para que eu própria começasse a reconhecer as minhas incapacidades e os direitos que tinha, decorrentes dela, criados para nos facilitar um pouco uma vida já de si cheia de desafios que nos habituamos a não valorizar. Foi então neste 2014, com 37 anos de (con)vivência com a artrite que comecei a usar o direito ao atendimento prioritário. Confrontei-me com essa ambiguidade de «ser mais do que os outros, por ser menos do que os outros»... e não é fácil. Ninguém proclama orgulhosamente numa fila de supermercado ou num atendimento público: devo ser atendida prioritariamente porque tenho dificuldades motoras, porque tenho artrite ou outra doença reumática. Até porque falamos de doenças invisíveis, porque vivemos numa sociedade em que ter «reumático» é normal, onde as doenças reumáticas continuam a ser pensadas como doenças da terceira idade e que têm de ser estoicamente suportadas, como naturais e inevitáveis. Assim, cada vez que me encontrei nessa situação de usar do meu direito ao atendimento prioritário, doeu-me. Doeu-me ter de decidir entre assumir publicamente a minha (in)capacidade, a minha (d')eficiência, ou aguardar a minha vez como o normal cidadão, com mais dores aqui e ali, maior dificuldade em cada passo seguinte... Mas a dor maior foi de perceber a falta de sensibilização da opinião pública para as doenças reumáticas e para as suas incapacidades. Pior do que isso, foi perceber que o atendimento prioritário é comummente traduzido para atendimento a grávidas, pessoas com crianças de colo e ajudas técnicas (canadianas ou cadeiras de roda). Para evitar situações em que o olhar clínico dos funcionários de atendimento não me concede qualquer incapacidade, passei a andar com a fotocópia do atestado multiusos na carteira. E posso aqui reportar situações caricatas, como quando me desloquei à repartição de Finanças para tratar da isenção do IUC por ser portadora de deficiência e ter como resposta (inicial) que o atendimento prioritário era para grávidas ou pessoas com muletas... até que o funcionário percebeu a total falta de lógica no raciocínio e avaliação da situação: a minha «deficiência» dava-me isenção no imposto, mas não direito a atendimento prioritário??? Portanto, ao fim de tanto tempo a resistir em usar os benefícios a que tenho direito, quando decido usar a minha voz, sou calada com argumentos desse tipo. Penso para os meus botões: se calhar até não tenho deficiência... não faço uma vida «normal» porque tenho medo de sair da minha zona de conforto... Subo e desço escadas de maneira diferente dos outros só para dar nas vistas, tenho de considerar mais tempo para chegar seja onde for porque sou preguiçosa, não consigo abrir uma garrafa de água por falta de jeito e se cair não me consigo levantar sozinha como forma de chamar a atenção sobre mim... E de repente, apercebo-me que continuar a resignar-me nestas situações é ser conivente com os estereótipos, com a ideia que «deficientes» com atendimento prioritário são só os que estão de canadianas, de cadeira de rodas, grávidas e pessoas com crianças de colo, etc. Nunca me considerei deficiente. Mas até acredito que os deficientes não se vêem como deficientes, mas até como eficientes, pela forma como ultrapassam os seus obstáculos diários e não desistem da autonomia possível. Tenho, aprendi a ter, consciência das minhas diferenças, o que posso, o que consigo, consequências, etc. Foi uma longa aprendizagem que ainda não está concluída. Primeiro passo: deixar de ter vergonha das minhas incapacidades. Tenho-as, atestadas, tal como tenho outras capacidades. E que escrúpulos me impedem de apelar às medidas, sempre poucas e essas sim deficientes, instituídas para facilitar a vida das pessoas com incapacidade? Ultrapassei a primeira barreira: assumo as minhas incapacidades. Esbarrei na segunda: falta de sensibilização para as incapacidades e doenças invisíveis e os estereótipos, as ideias feitas sobre deficiência e sobre doenças reumáticas. Encolher os ombros? Resignar-me? Proteger-me dessa exposição? Como posso eu exigir que percebam a invisibilidade se eu própria me esconder para não sair magoada desse confronto de «ser mais do que os outros, por ser menos do que os outros»? Em meados de Outubro tive de ir ao centro de emprego da minha área de residência para esclarecer uma dúvida, por sinal, entre ida ao hospital, onde iria fazer uma flebotomia. Solicitei ao segurança (que nos dá as senhas) atendimento prioritário, explicando que tinha atestado de 65% de incapacidade. Desconhecia. Foi perguntar à funcionária do atendimento e regressou com a informação de que eu não tinha direito a atendimento prioritário. Pedi para falar com a funcionária e fui mostrar-lhe a cópia do atestado multiusos e solicitar o meu direito ao atendimento prioritário. A senhora desconhecia o documento, nem sei se o leu e continuou a recusar-me o atendimento prioritário. Pedi-lhe, então, que me explicasse a quem se destinava o atendimento prioritário: grávidas, pessoas em cadeira de rodas ou canadianas ou com crianças de colo. Expliquei-lhe que aquele atestado me atribuía a condição de deficiente. Já saturada da minha insistência, perguntou-me o que eu queria e reencaminhou-me para outra secção, novamente sem me conceder atendimento prioritário. Saí do centro de emprego, frustradíssima. Felizmente, naquele dia, ainda andava sobre os meus pés. Mas os demais problemas que me levam à podologista, ao reumatologista, à consulta de doenças auto-imunes, à consulta de hemoterapia que não saltam ao olhar clínico de funcionárias que nem respeitam a autoridade de uma junta médica, estão cá e fazem de mim uma pessoa diferente, com prótese, com artrodéses e tudo o mais. Não sou mais nem menos do que os outros, mas se uma junta médica me concede 65% de incapacidade, tenho de ser a primeira a respeitá-la, a bem da minha saúde, e a fazê-la respeitar. Não posso ser privada dos meus direitos e, na minha condição, não posso ser constrangida a uma normalidade padronizada pelo senso comum que pode ter consequências para a minha saúde. Solicitei os esclarecimentos que precisava do IEFP por telefone, mas mais do que isso, usei os contactos e alertei para a situação, chamando a atenção para o Decreto-Lei n.º 135/99 de 22 de Abril: «Artigo 9.º Prioridades no atendimento 1 - Deve ser dada prioridade ao atendimento dos idosos, doentes, grávidas, pessoas com deficiência ou acompanhadas de crianças de colo e outros casos específicos com necessidades de atendimento prioritário. 2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior ou em legislação especial aplicável, os portadores de convocatórias ou os utentes com marcação prévia, feita nomeadamente por telefone ou online, têm prioridade no atendimento junto do serviço público para o qual foram convocados ou junto do qual procederam à marcação prévia.» Reportei o sucedido, a recusa de atendimento prioritário, o desconhecimento da lei, mas acima de tudo esse estereótipo de que deficiente usa ajudas técnicas, contrariando atestados médicos. O telefonema da coordenadora do IEFP que me acordou hoje, Dia Internacional da Pessoa Portadora de Deficiência, pretendia apresentar-me desculpas pelo sucedido, garantir terem sido chamadas à atenção as funcionárias do atendimento ao público para a (in)visibilidade da deficiência, seguindo-se, igualmente, um email com o mesmo teor. Tal como noutras situações semelhantes que se passaram comigo em hipermercados, em que não reclamei mas antes alertei para os meus direitos, inclusivamente a apresentar reclamação fundamentada, continuo sem vontade de lá regressar, pela experiência de frustração, de humilhação, de vulnerabilidade, de exposição... Incomoda-me. Ainda. Mas no que depender de mim, tenho de defender os meus direitos e cumprir os meus deveres. «O Preâmbulo da CDPD reconhece que a deficiência é “um conceito em evolução”, mas realça também que “a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e barreiras comportamentais e ambientais que impedem a sua participação plena e eficaz na sociedade de forma igualitária”. Definir a deficiência como uma interação significa que a “deficiência” não é um atributo da pessoa.» (Relatório Mundial sobre a Deficiência, OMS, 2011) Cabe-nos a nós, educar, alertar, sensibilizar para essas barreiras e não escondermo-nos atrás delas. Esconder-me não contribui para o meu bem-estar e muito menos para o bem-estar de todos quantos possam a vir estar na mesma situação. A vida continua. Todos os dias, enquanto continuar.